O bolo era grande, com uma cobertura delicada de marshmallow e velas anunciando os 90 anos da dona da festa, avó de sangue da minha melhor amiga e minha avó postiça. Eu sabia exatamente o que havia dentro dele: pão de ló branco, fofo, e recheio de creme e doce de abacaxi. Já provei muitas vezes essa receita ao longo das décadas de amizade com aquela família: ele é presença certa nas celebrações, uma tradição. Para mim, tem gosto de afeto e de risos e evoca doçuras que vão muito além do sabor. Naquele dia, entrei na fila, ganhei um pedaço de tamanho moderado, voltei para a minha mesa e comi aquela fatia (só aquela!) revivendo momentos felizes. Saboreei cada instante da experiência com prazer e emoção.
Tem sido assim desde que conheci a nutrição comportamental, um movimento capitaneado por duas nutricionistas de São Paulo, Cynthia Antonaccio e Marle Alvarenga, e admirado por tantas outras. Em outubro, o primeiro workshop a abordar o assunto com profundidade no Brasil, apoiado por entidades como a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), tinha vagas esgotadas. Com vasta vivência em consultório, Cynthia e Marle começaram a questionar por quê, apesar de toda a informação disponível sobre nutrição e emagrecimento e da enorme variedade de dietas disponíveis, a obesidade continuava crescendo assustadoramente. Segundo a revista científica Lancet, existem 2,1 bilhões de pessoas acima do peso no mundo, quase o triplo do que havia em 1980. O campeão em obesidade são os Estados Unidos, mas o Brasil ocupa um nada honroso quinto lugar. “É fácil perceber que algo não funciona: as pessoas perdem peso, recuperam, buscam milagres”, diz Marle. A solução, acredita ela, é botar uma lupa na relação que mantemos com os alimentos (daí a palavra comportamental) e resgatar o prazer de comer.
Pare de brigar com a comida
Para muitas de nós, a comida virou sinônimo de problema. Na melhor das hipóteses, pensamos nela como um pacote de nutrientes e calorias. Na pior delas, simplesmente como calorias. Eu me encaixo nesse time. Durante muitos anos, lutei contra a obesidade. Há três anos, graças a uma dieta séria, restritiva e sem malabarismos, consegui eliminar 25 quilos. Mas emagrecer foi fácil perto do que veio depois, já que a comida continuou sendo minha adversária. Numa entrevista para esta reportagem-testemunho, a nutricionista Cynthia Antonaccio definiu, sem saber, a minha tática para não engordar de novo – e tudo o que ela tinha (tem) de artificial. “Dietas restritivas podem deixar as pessoas transtornadas. Elas devoram tudo o que aparece pela frente e então sobem na esteira e correm horas. Nosso corpo não é um depósito, e não precisamos purgar dessa forma o que ingerimos. É a relação com os alimentos que precisa mudar.” (Eu, quando exagero – e nem é tanto assim –, passo duas horas na academia no dia seguinte.) Considerando que teremos que repor as energias pelo resto da nossa vida, precisamos criar um vínculo melhor com a comida, defendem as nutricionistas.
A nutrição comportamental não é achismo – ela se ampara em evidências e artigos científicos. Um deles, publicado no periódico americano Journal of the Academy of Nutrition and Dietetics, revelou o alto grau de sucesso de 20 programas nutricionais baseados não na perda de peso, e sim na capacidade de identificar os sinais internos de fome e saciedade, lidando equilibradamente com eles. De maneira geral, constata o estudo, houve melhora nos hábitos alimentares e na autoestima. E a perda de peso, que a gente tanto busca, seja por razões estéticas, seja por saúde? “Vem a reboque, de forma mais consistente, à medida que a pessoa passa a respeitar os sinais do seu corpo e a comer melhor”, afirma Cynthia. E se a gente não puder esperar para entrar num biquíni branco no verão ou porque nossa saúde está ameaçada? “É a hora de pensar na longa jornada de tentativas frustradas de emagrecer que cada pessoa carrega consigo”, argumenta Marle. “Então a nossa abordagem passa a fazer mais sentido.” Peso, lembram elas, não é um comportamento – é o resultado de comportamentos. E é essa sutileza que faz toda a diferença para a nutrição comportamental.
Para chegar a esse estado de equilíbrio e consolidar um vínculo de amizade com a comida, várias técnicas ajudam. Um dos pilares da nutrição comportamental é o Comer Intuitivo. Essa abordagem prega um relacionamento saudável entre alimento, mente e corpo por meio da percepção dos sentimentos. “O paciente pode consumir o que tem vontade desde que respeite os sinais de fome e de saciedade”, explica Cynthia Antonaccio. “Uma pessoa que habitualmente ingere três colheres de arroz numa refeição pode servir-se de quatro quando estiver certa de que essa decisão é motivada por um gasto de energia maior, e não por gula ou ansiedade.” O Comer Intuitivo também pede atenção plena ao momento da refeição – só assim saberemos quando a fome foi de fato saciada –, degustando os alimentos, de preferência num ambiente adequado. “Cada vez mais o brasileiro come em movimento, em pé ou na mesa do escritório, sem mastigar”, descreve a nutricionista.
É fome ou outra coisa?
Aprender a diferença entre saciedade e ansiedade é um ponto nevrálgico da nutrição comportamental. É, também, um desafio para quem vive em conflito com a balança. Envolve autoconhecimento e um mergulho profundo, às vezes até doloroso, nas razões pelas quais comemos – e frequentemente elas não têm nada a ver com fome. Muitas vezes, buscamos conforto num alimento porque estamos ansiosas, porque brigamos com o chefe ou porque o moço não mandou nem um whatsapp no dia seguinte. Uma boa estratégia do movimento para identificar cada situação é fazer um diário alimentar que contemple as emoções no momento de cada refeição. Dá um pouco de trabalho, mas é um exercício precioso. Por que você abocanhou aquele cookie às 2 e meia da tarde, se o almoço tinha sido à 1 hora? Não por fome… Com o tempo e a prática, a gente consegue se perguntar: se meu problema é cansaço, o que posso oferecer a mim mesma nesse momento, em vez de comida?
Mudança de atitude
As propostas da nutrição comportamental nos convidam a olhar para dentro de nós mesmas e a admitir que estamos lidando de forma equivocada com as nossas emoções, o que pode precisar de uma investigação mais profunda (isso já foge do alcance da nutrição, mas pode igualmente valer a pena). No entanto, esse novo olhar para a forma como nos alimentamos pode ser a esperança de um emagrecimento duradouro. Uma consulta com um profissional que pratica as diretrizes da nutrição comportamental é uma experiência diferente. “A entrevista inicial pretende criar vínculos fortes. Não queremos que o paciente esconda nada de nós. Também ouvimos mais do que falamos. Formulamos perguntas com potencial para desencadear uma mudança de atitude”, conta Cynthia. Imagine, por exemplo, uma pessoa que pula o café da manhã. Ela será convidada a explicar como se sente e o que estaria disposta a fazer, considerando que o lanchinho que ela faz às 10 da manhã (quando a fome fica inclemente) deixa seu estômago pesado e atrapalha o apetite para o almoço. “Construímos juntos um cardápio, orientando o paciente. Nem sempre conseguimos o ideal no primeiro momento, mas, se essa pessoa do exemplo do café da manhã consumir alguma coisa, será melhor do que nada.”
O conceito de saudável vai entrando aos poucos, ancorado na rotina de cada um. O prazer é indissociável. “Comer não é apenas ingerir o alimento. Tem aspectos simbólicos, sociais, culturais e afetivos (lembra o bolo dos 90 anos da avó?), que não podem ser ignorados pela nutrição”, diz Cynthia. “Não é normal a pessoa ir a um casamento e levar um lanche na bolsa nem surtar porque há uma festa num bufê infantil”, complementa Marle. “A busca por uma alimentação perfeccionista também é um transtorno e tem nome: ortorexia nervosa.” Então, a saída é apreciar a fatia do bolo, permitir que todos os bons sentimentos associados àquela pequena maravilha venham à tona e, no dia seguinte, fazer a corridinha habitual. Não para compensar as calorias do bolo, mas porque eu gosto e me faz bem.