Uma vaga de garagem e as inteligências do coração
Hoje cheguei em casa e notei que há algumas semanas tem um vizinho com carro novo na vaga em frente à minha.
Quando mudei para esse prédio estava animada. Foi há quase dois anos e tudo ia de vento em popa. Estava em um emprego novo, que eu nunca imaginei ter, o namoro firmando e uma promessa de coisas boas no ar. Sempre que vou mudar de casa meu pai pergunta: viu se a vaga da garagem é boa? E eu tinha visto, era larga e coberta.
No primeiro dia em que fui estacionar percebi que talvez não fosse tão boa: era larga mas o espaço para manobrar, minúsculo. De cara já ralei toda a lateral do parachoque direito do carro que ainda cheirava a novo.
Comecei a me programar para sair dez minutos mais cedo de casa só para dar conta das manobras. E quando voltava cansada do trabalho por vezes tive vontade de chorar. Cheguei a contar 18 manobras em um só dia para enfiar o carro naquele espaço.
Nas semanas subsequentes tentei, com o uso da comunicação não violenta, explicar ao meu vizinho de vaga que todas as vagas eram desafiadoras, mas que se ele colocasse a bicicleta dele naquele espaço sem função na lateral de sua vaga e chegasse sua SUV mais para frente, a minha manobra ficaria um pouco menos difícil. Na segunda semana pedi com menos gentileza. E na terceira semana, após ralar por 20 dias a frente do meu carro, já havia compreendido o que era o tal do desapego, e solicitei pela intervenção do síndico no caso, não pela estética do carro mas pelo desgaste que aqueles minutos suados de manobra estavam me causando.
O síndico simpatizou com a minha causa, mas já adiantou que aquele vizinho não era muito colaborativo. Entretanto, se prontificou a trocar de vaga comigo, pois seu fusquinha sem rodas era uma relíquia dos tempos em que ele fazia faculdade e já não circulava mais e poderia ficar na minha vaga difícil, assim eu ficaria com a vaga menos difícil dele. No meu parco entendimento senti uma compaixão rolando no ar. Aceitei de pronto.
Mas aqui começou o treino de uma nova habilidade: a paciência. Seu Ernani, apesar de bem intencionado, necessitou de algo em torno de quatro meses para conseguir uma união astral que permitisse que o borracheiro trouxesse um pneu e que um porteiro, o zelador e dois funcionários da limpeza se unissem a ele para levar, meio no muque meio na roda, o fusquinha para a vaga difícil. Sem contar com a habilidade necessária para não quebrar as garrafas de vinho ali armazenadas já que sem rodas o fusca virou adega.
Fiquei satisfeita com a vaga nova, mas a partir de então a manobra inverteu o lado e passei a ralar o parachoque esquerdo. Mais satisfeita ainda eu fiquei quando consegui alugar a vaga perpendicular à essa e o namorado, já não tão novo, poderia parar ali, sem nos preocuparmos em acordar mais cedo no sábado para tirar o carro da Zona Azul.
Comecei então a parar na vaga nova. Alguns dias de treino e fui ficando craque em estacionar com cada vez menos manobras. Nos dias em que fazia só duas me sentia gloriosa. Uma sensação de superação e dever cumprido. Outros dias errava na distância inicial da pilastra e precisava de cinco ou seis viradinhas. Alguns dias me peguei torcendo para que o vizinho da frente tivesse um dia de trabalho mais puxado que o meu, o que me pouparia um tanto de balizas. Nem sempre eu tinha sorte.
Então o vizinho da frente mudou e um carro bem pequenininho ficou naquela vaga. Foram meses de calmaria e despreocupação. Mas a vaga alugada foi desalugada já que a proprietária do apartamento faleceu e ele foi alugado por uma empresa. Sendo empresa, cada hora viria uma pessoa diferente, então a imobiliária me deixou ficar com a vaga do apê alugado e a empresa ficou com a vaga do Seu Ernani, que manteve o fusquinha na minha vaga original. Um troca troca de vagas e voltamos a acordar cedo para tirar o carro do namorado da Zona Azul.
Passados outros meses uma outra vaga surgiu para alugar. Era na garagem de cima e não melhor do que a vaga que eu usava hoje, mas voltamos a esticar o sono das manhãs de sábado sem multas para nos preocuparmos.
Hoje cheguei em casa e o Uno do Seu Ernani estava parado de lado na vaga do apê que a empresa está alugando. Um novo vizinho com uma SUV enorme está parando na vaga da minha frente. E eu entrei na garagem já criando uma estratégia para estacionar sem me estressar.
Percebi nesse momento que a história dessa vaga me ensinou na prática uma série de conceitos que eu vinha lendo e apanhando para aprender.
Aprendi DESAPEGO ao perceber que os ralados dos parachoques do meu carro não importavam. Aprendi PACIÊNCIA ao perceber que o tempo do Seu Ernani era diferente do meu e que estava tudo bem assim. Aprendi RESILIÊNCIA ao perceber que o que antes me estressava, fazia meu coração acelerar e minha mandíbula apertar de raiva, agora já estava adaptado e não importa se tem um carro grande, pequeno ou nenhum carro na vaga da frente da minha eu consigo estacionar usando um pouquinho de criatividade e bom humor. Desenvolvi a capacidade de me ADAPTAR seja qual for o desafio que se apresentar em torno da vaga.
Por fim, ao mudar tantas vezes de vaga também aprendi que a IMPERMANÊNCIA nos acompanha todo dia e talvez seja a única coisa inevitável na vida.