A farmácia da alma
Senti o corpo quente, as bochechas vermelhas, o peito queimando. Ainda precisava enfrentar 400km de estrada dirigindo sozinha. Parei na farmácia mais próxima, pedi um remédio para febre. A farmácia era toda clara, todos os funcionários com roupas iguais, muito solícitos, mas com sorrisos intocáveis. Sai com a pele quente e o coração frio.
Horas depois, já em casa, banho gostoso, chá de alho com limão, deitei. Meu coração se aqueceu ao lembrar do Farina. Cabelos pretos grossos, bigode farto contrastando com a pele clara, um dos olhares mais bondosos que já encontrei. “Fala menina! O que se passa nesse coração hoje?”
O Farina era farmacêutico do bairro em que eu morava quando criança. Na periferia da cidade grande a gente não ligava muito para médico. A farmácia era um corredor pequeno, com uma salinha no fundo. Com um sorriso gentil, era ali que o Farina tirava nossa pressão ao perguntar:
“como vai o Italiano?”
Italiano era meu avô Otávio, socorrido de muitas crises de tosse com as palavras carinhosas do Farina. Liguei para o meu irmão: “Lembra do Farina?” Senti o sorriso do outro lado da linha: “Uma vez fiquei com o pescoço torto jogando basquete, lembra? Ele disse: chega aqui. Me colocou numa maca e deu um estralo nas minhas costas. O pescoço voltou no lugar na hora. Fiquei impressionado. Ele era pau para toda obra.”
Eu me lembrava dele assim também, para todo mal tinha uma cura, nem que fosse apenas curar a angústia de não ter cura. Em tempos de cada profissional de saúde cuidando de um pedaço cada vez menor de nós, sinto saudades de encontrar um Farina! Mais do que os remédios, ele conhecia todo o bairro. Quem mora com quem, quem é tio de quem, quem trabalha com o que. Dona Maria costuma ter dor nas costas no dia em que cuida do jardim, Dona Odete sofre mais dos nervos quando os filhos demoram a chegar, Dona Dirce piora do ombro quando tem muita encomenda de costura.
Conforme disse meu irmão, “Farina era um cara que gostava de conversar, e parecia que o remédio era só a cereja do bolo no tratamento, a conversa que vinha antes me parecia mais importante pra ele.” No fim, é isso mesmo, quando estamos sofrendo, o remédio é parte pequena – importante sim, mas pequena – do tratamento. Sofrimento se cuida com afeto, com carinho, com amor!
Meu desejo para os dias de hoje é que a gente possa encontrar muitos Farinas pelos nossos caminhos. E como médica, eu possa trazer o espírito dele nos meus atendimentos. Que sempre haja uma salinha no fundo para “tirar a pressão” e que as conversas sejam o tratamento mais
importante. Que a gente possa diariamente se lembrar que saúde não está apenas no corpo! Está principalmente nas nossas relações, no acolhimento das nossas angústias, em um sorriso gentil que encontra o coração do outro.
Desejo que haja um Farina sorrindo no coração de cada um e que este seja o nosso melhor remédio!
PS.: Farina faleceu na pandemia. Enquanto me recupero da Covid, fica aqui minha singela homenagem a esse querido que tanto tocou nossos corações em momentos difíceis.
Regina Chamon (Dra. Sangue Bom)
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