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Treino 3D - Corpo, Mente e Espírito, com Samorai

Bacharel em esporte, Samorai (@samorai3d) é criador do método de treinamento 3dimensional para reabilitação, prevenção e tratamento de lesões e performance. Aqui, auxilia praticantes e treinadores na busca por harmonia.

Onde está a dor não está o problema

Por Samorai
Atualizado em 21 out 2024, 22h28 - Publicado em 6 jul 2021, 20h26
Já imaginou correr de carro com o freio de mão puxado? Pois é isso que tentamos fazer com nosso corpo
Já imaginou correr de carro com o freio de mão puxado? Pois é isso que tentamos fazer com nosso corpo (Alexander Redl on Unsplash/BOA FORMA)
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Imagine que você, a partir de hoje, ande com seu carro sempre com o freio de mão puxado. Seguramente ele vai apresentar problemas em diversos lugares. Provavelmente ele vai andar “amarrado”. Vai gastar mais combustível. Vai perder performance. Vai gastar mais peças. Vai ter menos estabilidade (possivelmente, vai sair de traseira), ou seja, por causa de uma execução inadequada em uma parte do carro, no caso, o uso do freio de mão, muitas outras partes “pagarão a conta”.

Agora vamos imaginar que a pessoa que tem esse carro, sem saber que o grande culpado é o freio de mão e percebendo que ele não está legal, tente corrigir o problema a partir de onde ele se apresenta. Por exemplo, ele está gastando mais combustível? Troque o tanque. Está perdendo performance? Troque o motor. Está saindo de traseira? Troque a suspensão. O leitor mais atento já percebeu que todas essas soluções gerariam um custo enorme e não solucionariam os problemas, porque onde eles se manifestam não são as causas, mas sim os sintomas.

E para solucionar, o que precisaria ser feito, visto que são sintomas gravíssimos? Abaixar o freio de mão e, em um passe de mágica, o carro voltaria a ser o que era antes. Isso acontece porque em um sistema integrado a parte influencia o todo e vice-versa. O carro é um sistema integrado e complexo. Para funcionar com eficiência é preciso que todas as partes estejam integradas e harmônicas e que sejam usadas da maneira correta. Então, o pneu tem que estar cheio, o combustível tem que ser o correto, a correia dentada tem que estar ajustada e sem folga, o câmbio deve trocar de marcha a partir de determinado giro do motor. Se tudo estiver em pleno funcionamento, o carro não apresentará problemas.

A essa altura do campeonato você já deve ter conferido se está lendo o texto no lugar certo. Será que entrei no site certo? Mas aqui é a Boa Forma e não um site sobre carros. Então por que estou lendo sobre isso aqui? Porque essa é uma das minhas analogias favoritas para explicar o funcionamento do corpo, as dores e lesões e a forma como a maioria dos tratamentos acontecem, e talvez por isso que muitas pessoas convivem com tantas dores por muito tempo e nada do que fazem para melhorar parece gerar uma solução duradoura.

Se o carro é um sistema integrado, o corpo também é. E a lógica que vale para um, vale para outro. Ou seja, uma parte influencia e é influenciada pelo todo. Aliás, o corpo não só é um sistema integrado como também complexo. O mais complexo de todos. Sendo assim, onde aparece um sintoma não está o problema. A parte onde o sintoma aparece não é a vilã da história, mas a vítima. Vou exemplificar para facilitar a compreensão.

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Um dia você sai para correr e seu joelho começa a doer. Em geral, pensamos que temos um problema no joelho. Que ele não está funcionando bem e que ele é a causa da dor que sinto. Mas a verdade é que ele também é vítima. Alguma coisa nesse sistema integrado não está fazendo o seu papel e, por isso, o joelho não consegue realizar sua tarefa adequadamente. Voltando ao exemplo do carro, o freio de mão não cumpriu o seu papel, então a suspensão não podia estabilizar adequadamente o carro nas curvas. Logo, digo que onde dói não está o problema.

E para resolver esse problema e reabilitar, não o joelho, e sim o sistema que está sobrecarregando o joelho, precisamos responder à pergunta de um milhão de dólares. O que está causando essa sobrecarga no joelho que está funcionando inadequadamente em função dessa desarmonia no sistema e se manifestando em forma de dor? Essa pergunta é importantíssima porque a partir dela busco no sistema inteiro onde está essa alavanca de freio de mão puxada. E mais importante ainda, tenho que lembrar que essa “alavanca” pode estar em corpo, mente e espírito. Quando analiso o problema dessa forma me abro para infinitas possibilidades e levo em consideração o todo. Então, vou procurar a resposta para essa questão analisando todas as partes desse sistema e procurando quem não está realizando a sua tarefa corretamente, trabalhar em cima disso, e, seguramente, a solução aparece rapidamente, como abaixar uma alavanca de freio de mão. Esse é o olhar 3D.

Talvez você deva estar pensando que isso é óbvio. E é mesmo. É um pensamento simples para um sistema complexo. Mas não é assim que as reabilitações são feitas. Você sente dor no seu joelho ao correr e a partir de então todas as alternativas que lhe são passadas tem a ver com seu joelho, ou em outras palavras, com o sintoma e não com a causa. Você faz um raio-X no joelho. Uma ressonância magnética, ultrassom, eletroestimulação, turbilhão, liberação miofacial, infravermelho, toma analgésico para não sentir a dor do joelho, faz acupuntura no seu joelho, infiltração e no final de tudo, uma cirurgia. Muitas vezes nada disso traz solução e você nunca mais volta a correr. E tudo porque não foi observado o óbvio. Em um sistema complexo todas as partes podem ser causa de um problema e a menos provável é que onde ele aparece seja também a causa. Um joelho pode ter dor enquanto corre por infinitas causas. Vou levantar aqui algumas das possibilidades.

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Vamos pensar na corrida. De maneira geral, corrida é transportar o corpo de um ponto até outro tendo um ou nenhum contato com o chão. Para realizar essa tarefa o corpo utiliza a energia que vem do chão. O principal desafio aqui é desacelerar o contato com o chão e depois impulsionar o corpo a partir da energia que vem dele.

Simplificando, desacelerar e acelerar. Quando um pé entra em contato com o solo, ele precisa desacelerar esse contato. Para isso, o calcanhar entra em um movimento que chamamos de eversão, que é um movimento onde o calcanhar fica deslocado lateralmente para fora em relação à perna. É um movimento sutil, mas vital para essa desaceleração. Suponhamos que o calcanhar não esteja desempenhando essa função adequadamente. Por ele não estar fazendo nada, não será ele que vai doer, mas por não desacelerar essa carga já, a partir do calcanhar, ela chega muito intensa no joelho que, dada a função dele no corpo, não tem tanta capacidade de desacelerar quanto o calcanhar, mas que agora tem que lidar com ela.

Essa carga gera nele um estresse muito grande que pode gerar sintomas como uma tendinite. A partir disso, posso até fazer uma ressonância, mas o máximo que ela vai constatar é uma tendinite. Isso eu já sabia, porque tudo começa com a dor no joelho. E mesmo que eu não saiba o nome dessa dor, sei que ela me impede de correr. Agora ela tem nome. Tendinite. No entanto, pela ressonância continuaria não sabendo a causa, porque o pé não aparece nela. E mesmo que aparecesse não estaria em movimento e não seria possível ver a falta de eversão do calcanhar. A verdadeira causa do problema. Poderia também fazer um ultrassom e ficar um tempo sem correr. Isso melhoraria o sintoma, porque sem correr não há falta de eversão no calcanhar e nem estresse no joelho. O ultrassom vai ajudar a desinflamar, porém assim que você voltar a correr todo esse mecanismo voltará como sempre foi e, para seu joelho voltar a doer e inflamar é questão de tempo. Ou quilômetros. A única ação que resultaria em uma solução definitiva seria “abaixar o freio de mão”, ou seja, voltar a fazer o calcanhar entrar em eversão e cumprir sua função na corrida. A tendinite desapareceria em pouco tempo porque o estresse não mais chegaria excessivo no joelho.

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Aí você pode estar pensando então que agora, toda vez que algum joelho apontar uma tendinite é só melhorar a eversão do calcanhar e tudo se resolve. Mas não é assim. Uma mesma lesão pode ter infinitas causas. O pé entra no chão e dessa vez o calcanhar faz um brilhante trabalho entrando em eversão para desacelerar o contato com o chão. No entanto, essa tarefa é muito difícil, pois uma passada na corrida pode chegar a 8 vezes o peso corporal e ele não pode fazer esse serviço sozinho. Ele conta com todo o resto do corpo que atua em um sistema integrado para ajudá-lo. Então, em uma ação combinada, a tíbia (que é aquele osso duro da canela) entra em rotação interna que, através da articulação do joelho, guia o fêmur (aquele osso mais duro ainda da coxa) para acompanhá-la nessa rotação.

Esse movimento do fêmur provoca na articulação do quadril uma rotação interna, que ativa o glúteo no plano transverso. Uma vez ativado, o glúteo, um músculo fortíssimo, ajuda o calcanhar, lá embaixo, através de uma reação em cadeia, a desacelerar o movimento da pisada. Isso aconteceria se tudo funcionasse bem, mas o quadril desse corredor está com uma deficiência na rotação interna. Então, a tíbia entra em rotação, mas o fêmur não (porque o quadril limita o movimento dele), provocando no joelho uma rotação enorme, muito maior do que ele pode suportar. Mas ele é guerreiro e faz seu melhor.

Porém, assim que ele acha que esse problema acabou vem o próximo passo, tudo isso começa novamente e assim sucessivamente a cada passo. E esse estresse que o joelho enfrenta a cada passo deixa uma inflamação que com o passar do tempo também se transforma em tendinite. Agora não adianta culpa o calcanhar. O problema está no quadril. E poderia estar em qualquer parte do corpo já que em um sistema integrado sempre é possível achar um problema vindo de qualquer parte porque todas pertencem à cadeia de reação. Eu posso tomar um anti-inflamatório para o joelho. Pode aliviar o sintoma por um tempo, mas como não melhora a função do quadril, em pouco tempo nem efeito mais vai fazer. Posso fazer acupuntura no joelho, que poderia ajudar a aliviar o sintoma, mas apenas até o próximo passo no qual toda essa cadeia vai acontecer novamente.

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Resultado, a pessoa deixa de correr, de jogar bola, de fazer o que ama, pois acredita que seu joelho é fraco. Que ele é uma porcaria. O que é uma baita injustiça com o joelho. Porque ele trabalha por ele e pelo outro que não faz sua parte. De fraco ele não tem nada. Ele é um guerreiro. Contudo, como os tratamentos tradicionais não enxergam o óbvio, que o corpo é integrado, trabalha em cadeia de reação e que uma parte afeta o todo, ele paga a conta e ainda vira o vilão. Entretanto, aposto que se você, que hoje deixou de correr, pudesse perguntar para o seu joelho por que ele não te ajuda a correr, seguramente ele te falaria: “Meu amigo, para de olhar para mim. Procure em outras partes do seu corpo, porque eu sou tão vítima quanto você”.

Forte abraço,

Samorai.

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